Fontes filosóficas do humanismo

18-02-2013 19:54

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Caruso Samel

No nosso artigo anterior, publicado em janeiro de 2013 sob o título O que é ser humanista, procuramos conceituar o significado e as origens desse termo de larga aplicação universal ainda nos dias de hoje. Esta segunda parte nos levará a conhecer as vertentes do Humanismo e seus principais mentores-filósofos pré-renascentistas.

Embora ao longo dos séculos as estruturas sociais tenham passado por grandes mudanças, nos dias atuais já bem diferentes daquela época em que a pirâmide social se caracterizava por povo, nobreza e clero, as ideias humanistas percorreram os séculos e se adaptaram às necessidades de liberdade, fraternidade e igualdade perseguidas por muitas nações desde a Revolução Francesa.

O que se procurou com o movimento humanista de transição, desde o nascedouro? Procurou-se desenvolver e expandir o conhecimento, meta essa facilitada pela criação da imprensa, em 1439, por Johannes Gutemberg. em Mainz, na Alemanha. Isso levou a humanidade a conhecer os textos literários dos clássicos da Grécia e de Roma e os trabalhos de ciências naturais desenvolvidos por Aristóteles.

Predominavam, na Idade Média, as correntes de pensamento conhecidas como o neoplatonismo, a escolástica aristotélica e os ensinamentos religiosos de Santo Agostinho e de São Thomaz, adotados pelo clero dominante. Foi, porém, o surgimento de um interesse renovado pelas filosofias da Grécia e de Roma, interesse este capitaneado pelos neoplatônicos, que abriu o caminho para o pensamento humanista. Foram os neoplatônicos renascentistas como Pico della Mirandola, Marsílio Ficino, Giordano Bruno e Nicolau de Cusa que adotaram uma atitude mais positiva em relação à vida e ao mundo do que seus predecessores medievais. É sobre eles e suas ideias que vamos discorrer sucintamente neste artigo. 

Desses vultos, o mais conhecido até os dias de hoje foi Giordano Bruno, que morreu queimado na fogueira em praça pública pela Inquisição. É curioso assinalar também que a presença de Nicolau de Cusa (1400 – 1464) foi tida por alguns como um paradoxo, pois ele foi um cardeal alemão.

E onde se enquadravam o homem e o mundo na visão desses humanistas? Esses grandes vultos da História, que abriram caminho para o movimento renascentista, fizeram pender o pêndulo do pensamento teocentrista (teocentrismo: Deus como centro de todas as cogitações) adotado e imposto pelo clero, para uma visão centrada no Homem (antropocentrismo: o Homem como centro de todas as coisas e realizações). 

A partir de então, o homem, que era tido como criatura, criada por Deus – o Criador, passou a ser olhado, também, como criador. Criador de iniciativas, de oportunidades, realizador de grandes feitos e conquistas. Esta aparente pequenina guinada na História reflete até os dias de hoje uma aceitação cada vez mais preponderante do conceito do livre-arbítrio, em que o Homem, na sua jornada terrena, é senhor do seu destino, com implicações de fantástico progresso material e evolução espiritual em todas as áreas do conhecimento humano. 

À parte outros fatores e consequências, foi através do Humanismo como fulcro que a ciência materializou suas primeiras conquistas decorrentes da observação metódica das leis da natureza e aplicação de técnicas de experimentação, e o Homem começou a se sentir senhor de seus destinos. Este desenvolvimento atravessou cinco séculos, chegou à modernidade atual com realizações científicas e tecnológicas surpreendentes, e vai nos levar muito mais além.

Algumas poucas palavras sobre os humanistas pré-renascentistas. Primeiramente, sobre Nicolau de Cusa, administrador e filósofo alemão. Amigo de Gutemberg, o inventor da imprensa de tipos móveis, formou-se em Direito Canônico pela Universidade de Heidelberg. Envolveu-se com muitos problemas político-eclesiásticos e até foi preso. Ele é reconhecido como a grande figura na transição do pensamento medieval para o pensamento moderno. Escreveu Docta Ignorantia (1440) e De Visione Dei (1453), a primeira obra muito polêmica por afirmar a existência dos contrários na unidade. São dele frases como “os contrários podem sintetizar-se numa mesma realidade” e “a realidade está cheia de contradições, o que mostra quão pouco o homem sabe”, ou ainda “quanto mais você aprende, mais percebe sua ignorância”, esta última bem próxima à afirmação de Sócrates: “o que eu sei é que nada sei”. É dele também a frase “Deus é incognoscível e ao mesmo tempo confiável”.

Na ordem cronológica, segue-se o filósofo florentino Marsílio Ficino, que nasceu e morreu em Florença (1433 - 1499), tendo sido contemporâneo de Pico della Mirandola. Traduziu para o latim as obras de Platão, com quem se identificou. Estudou as obras de Galeno, Hipócrates e Aristóteles. Aos 19 anos, Marsílio Ficino escreveu uma coletânea de textos em latim – aSumma philosofae, em que trata de física, de lógica, de Deus e de muitas questões polêmicas à época. Rico e tendo o amparo dos Médicis, fundou uma Academia em Florença nos moldes da de Platão, na Grécia. Traduziu o Corpus Hermeticum do grande Hermes Trismegistus para o latim. Foi o criador de muitos termos e frases, como a frase amor platônico para significar amor socrático. Sobre a razão escreveu: "Conhece-te a ti mesmo, ó linhagem divina vestida com trajes mortais. Despe-te, eu te peço, separa o quanto podes, e podes o quanto te esforces; separa, digo, a alma do corpo, a razão dos afetos do sentido. Verás, logo, cessadas as brutalidades terrenas, um puro ouro, e, afastadas as nuvens, verás um luminoso ar; e então, acredita-me, respeitarás a ti mesmo como um raio eterno do divino sol." Seu pensamento filosófico está contido na obra De imortalitate animorum, em que trata da imortalidade da alma. Comparou e exaltou o Homem como um universo microscópico – o microcosmo em complemento ao macrocosmo – o Universo. Caída a dinastia de Lourenço de Médicis, perdeu influência, morrendo pouco depois.

Segue-se Giovanni Pico della Mirandola (1463 – 1494), Tendo vivido apenas 31 anos, estudou Direito Canônico, que acabou abandonando, Filosofia e Teologia. Procurou unificar os conhecimentos do Talmude, da Cabala e do Cristianismo, já que conhecia o aramaico, o hebreu e o árabe. Esses estudos foram apresentados em suas 900 teses, reunidas sob o título de De Hominis Dignitate Oratio – Oração da dignidade do homem. Embora ele desafiasse filósofos de toda a Europa a debater com ele suas teses, 13 dessas teses foram rejeitadas pelo Papa Inocêncio VIII, tendo ele que se retratar diante da Igreja. Morreu de forma misteriosa. Suas teses acabaram sendo um divisor de águas entre a filosofia platônica e as novas ideias humanistas, dando forte impulso a estas.

Não poderia deixar de fora e de falar algumas palavras sobre Giordano Bruno (1548 – 1600), frade domenicano que se tornou professor, escritor, filósofo e cosmólogo. Morreu como mártir sob as chamas das fogueiras da Inquisição. Como um dos maiores conhecedores das obras de São Tomás de Aquino e de Aristóteles, pôde contestar muitas das ideias desses filósofos. 

Giordano Bruno desenvolveu ideias próprias inovadoras e muito avançadas para a sua época, a ponto de vir a ser acusado, ainda moço, com 28 anos, de heresia pela Igreja. Por isso passou 14 anos de sua vida no estrangeiro, peregrinando pela França, Inglaterra, Suíça e Alemanha, onde sempre foi bem acolhido por reis e poderosos. Voltando à Itália, em Veneza, foi, pouco tempo depois, entregue às autoridades eclesiásticas da Inquisição, em 1592, pela própria pessoa que o convidou e o acolheu. 

Desde então, permaneceu preso e da prisão só saiu para ser queimado em praça pública, por não ter abjurado de suas ideias avançadas. De 1582 até 1595, publicou cerca de 40 obras, a mais famosa entre nós De infinito universo e monde (traduzida para o Português com o título de Sobre o infinito, o universo e o mundo – Abril Cultural), obra em que vai além das ideias do heliocentrismo (o sol como centro do Universo), tratando da imensidão infinita do Universo e da pluralidade dos mundos.

São de Giordano Bruno estas palavras: “Nós declaramos este espaço infinito, dado que não existe qualquer razão, conveniência, possibilidade, sentido ou natureza que lhe trace um limite.” Declarou, também, que a religião se afastou da racionalidade e isso contrariava os avanços da filosofia e da ciência nascente que estava se separando da filosofia.

(O autor, escritor, é militante da Filial Butantã-SP)