Ética, moral e moralidade
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Caruso Samel
O ser humano está inserido em um contexto social bastante complexo, com abrangência nas vivências sensitivas, intelectuais e volitivas no seu dia-a-dia.
Ética e moral tratam de ideias e conceitos intimamente inter-relacionados. Daí a confusão que muitas vezes existe entre os seus conceitos. Estariam o direito, a política e as religiões subordinadas à ética ou à moral? A palavra ética provém do grego (ethos = costumes) e o vocábulo moral provém do latim (mores = costumes), significando valores fundamentais do comportamento humano, da conduta humana. Contudo, a moral tem abrangência mais subjetiva, refere-se ao indivíduo, enquanto a ética é substancialmente mais objetiva e coletiva, referindo-se às regras de direito e de justiça sob as quais deve operar uma determinada sociedade. Então, nesse sentido, a moral se faz presente através da realização da ética na experiência cotidiana de cada um de nós.
De outro lado, o assim chamado "mundo ético", expressão abrangente, fundamenta-se nos conceitos de ética, moral e moralidade, inter-relacionados quase que num círculo fechado. Cabe, contudo, entender que deve haver uma hierarquia de valores e ações. Todo esse tripé de atributos existe para subordinar as ações humanas dentro dos limites razoáveis de auto-respeito e respeito ao próximo, ações essas subordinadas ao uso de um livre-arbítrio com responsabilidade. Assim, também a cultura de cada povo se assenta nesses valores ou atributos que levam o homem à evolução e à espiritualidade cada vez mais acentuada.
Pensando-se, ainda, de forma mais abrangente, podemos estender os limites desses valores no sentido político, através do conceito de cidadania (direitos individuais estabelecidos pela Constituição de cada país ou cultura) que se insere na estrutura da ética, e através do conceito de direito, cujo objeto é, de um lado, a justiça individual, e de outro, a justiça social.
CONSULTA. Vale lembrar que, segundo a axiologia (parte da filosofia que estuda os valores), a moral subordina-se à ética, extraindo dos princípios éticos as regras que devem nortear a conduta humana. É pela conduta que cada ser humano se realiza na vida material e espiritual, sem ofender o próximo, segundo a regra cristã de "não fazer a outrem o que não quer que lhe façam". Dessa forma, a ética permanece plena e soberana acima da moral, da cidadania e do direito, cumprindo sua vocação em harmonia com os mesmos objetivos dos demais ramos.
Será que deveríamos descartar o entendimento de que a moral é uma simples adesão às máximas de bem-querer e bem agir estabelecidas pelos filósofos e religiosos de todos os tempos, fazendo parte das assim chamadas regras de bons costumes nos domínios da existência humana? Ou este conceito precisa ser mais estendido, mais ampliado, mais abrangente? É o que veremos a seguir.
Segundo Immanuel Kant (1724 - 1804), criador do Idealismo Transcendental, da moral emana um "dever imperativo-categórico", que implica a compreensão do "dever pelo dever", que se situa bem no campo da de ontologia (ramo da ética cujo objeto de estudo são os fundamentos do dever e as normas morais). No entanto, outros filósofos aceitam o conceito estabelecido pela axiologia em termos culturais, ou seja, para que uma ação seja moral basta o cumprimento da obrigação em virtude do valor que ela encerra. Esta moral axiológica é, pois, mais flexível, menos rigorosa, própria de uma cultura humanista, mais em consonância com o perfil do ser humano, imperfeito por natureza. Até mesmo este último conceito deve impor limites seguros às aspirações e preferências subjetivas, para ser eficaz no contexto social. Ao aplicar-se a moral, o que de fato está em jogo é saber-se quando predomina o interesse subjetivo, meramente individualista, e quando se deve fazer valer, com maior razão, os direitos e deveres coletivos de uma sociedade como um todo.
É a moralidade, ou seja, o cultivo sereno e constante dos valores humanos, que deriva da própria consciência humana, que deveria impor-se em todos os campos da vida humana, na família, nas escolas, no trabalho e, também, tanto no campo político quanto no econômico. É a nossa consciência moral em ação que condena os desvios e os excessos, inclusive nas operações financeiras e políticas. Do contrário, teriam pouco valor os preceitos de nossa Carta Magna, o arcabouço de nossas leis vigentes. Numa época em que os atos de corrupção e de privilégios imperam por toda a parte, todo e qualquer movimento popular deve merecer o apoio de todos no sentido de fazer valerem os valores morais e as normas éticas e do direito em geral, pois são elas que representam, de fato, o povo que nós pensamos e desejamos ser aos olhos de nós mesmos e do mundo. É o mínimo que podemos aceitar para sermos considerados um povo sério e moralmente ético.
Quando dizemos para alguém "minha vida é um livro aberto", queremos dizer que não ocultamos segredos que violem a nossa moral, que temos moral ilibada, que resiste a qualquer censura, porque nossa conduta não ofende ninguém e respeita a todos, indistintamente de qualquer preconceito de raça ou de religião.
A moralidade é a mais viva imagem de um povo organizado e de sua cultura, fundada na própria consciência do ser, mas ela estende-se além da pessoa e transfunde-se na sociedade em que esse ser vive. A moralidade (coletivo da moral de cada um e de todos, sua somatória mesmo) representa, pois, a face, a fisionomia de um povo.
Na definição do professor Miguel Reale (1910 - 2006), respeitado jurista e filósofo brasileiro, "ética é a parte da filosofia que tem por objeto o estudo dos valores que presidem o comportamento humano em todas as suas expressões existenciais". Por isso mesmo, à ética estão subordinadas a moral, a política e o direito, porque nestas atividades estão ínsitas as formas subordinadas de agir. A axiologia (teoria dos valores) ampliou a abrangência da ética substituindo por Valor o conceito de Bem, este inicialmente estudado pela ética desde Aristóteles, que lhe deu vida. Houve aqui uma evolução conceitual da abrangência da ética. Assim, a ética está por trás do termo valor, palavra-chave de todas as ciências humanas. Os valores são inatos, isto é, inerentes à natureza humana, à natureza do próprio espírito, abrangendo no seu conjunto a maior parte dos seus atributos. São os valores, que se modificam sempre para melhor ao longo da experiência humana, vale dizer, ao longo das encarnações, que refletem a evolução do espírito, adquirindo este maior grau de espiritualidade. Ou seja, são os atributos espirituais, agrupados sob o conceito de valores, que constituem o caráter da pessoa humana, sendo o valor fonte dos demais valores.
Quando nós expressamos as ideias dominantes de um povo ou sociedade em termos de valores e liberdade, de utilidade, de prazer etc., estamos nos referindo a uma instância superior fundada na ética, que se sobrepõe à moral, esta tida como "teoria das regras de conduta que emergem dos usos e costumes", no dizer do mesmo citado filósofo e jurista. Neste caso, "o direito é ciência das relações sociais de natureza bilateral atributiva e a política é ciência e arte do governo dos povos à luz do princípio da cidadania". Neste sentido, "a experiência moral tem como consequência o dever de moralidade, que não se confunde com o dever de legalidade, a qual se contenta com a adequação da conduta à norma legal, quando é indispensável, para que haja justiça in concreto, que se leve em conta, tanto na política quanto no direito, o que emerge de normas morais como exigência de boa-fé, lealdade, correção ou integridade".
SUBORDINAÇÃO. Do que foi exposto, conclui-se que, na atual evolução humana, a ética é ciência axiológica ou valorativa por excelência e a ela se subordinam as regras da moral, da política e do direito. Esta é uma definição aceita pelos culturalistas, em que o homem, a sociedade e a natureza devem estar em permanente harmonia. No entanto, do ponto de vista espiritual, mais importante que a distinção entre ética e moral é a compreensão dos valores em si como sendo os elementos fundamentais de uma e de outra.
Para encerrar, podemos dizer que a ética deve ser definida como a ciência que estuda a conduta humana na sociedade e a moral é a qualidade desta conduta, aplicada ao indivíduo em suas ações direcionadas para o Bem ou para o Mal, sendo espiritualmente valiosa e progressista quando aplicada exclusivamente para a realização do Bem. Tal rigor é necessário para respaldar o senso de responsabilidade, que é o esteio de uma verdadeira vida moral.
Completa este rigor, o senso da fidelidade aos ditames da consciência que avalia, a cada momento, os valores em si como um verdadeiro juiz de nós mesmos. E, como a consciência é um atributo espiritual, sob o exclusivo ponto de vista espiritual, há uma inversão na hierarquia dos valores. Daí, inferir-se que a moral tem, desde sempre, prevalência sobre a ética, esta puramente valorativa do convívio humano correto e justo, mas variável em função das culturas e das sociedades organizadas no mundo.
(O autor é militante da Filial Butantã, SP)