Pecado e perdão, culpa e desculpa

05-12-2012 19:35

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Caruso Samel

Saber viver é uma arte e poucos se dão conta disso. De modo geral e amplo, podemos enquadrar o modus vivendi das pessoas em duas grandes categorias: aquelas que adotam um modo de viver baseado na posse e aquelas que adotam um modo de viver baseado nos valores éticos e morais. As do primeiro grupo são materialistas e fundamentam suas ações na acumulação de bens (filosofia do ter); as do segundo grupo são idealistas ou espiritualistas, e adotam um viver voltado para o modo ser de vida. No primeiro caso, qualquer que seja o erro ou ofensa que a pessoa venha a praticar é tido como pecado, que só pode ser redimido pelo perdão. No segundo caso, os atos da vida são tidos como naturais e a culpa ou ofensa pode ser corrigida por um pedido de desculpa, mesmo que esta não seja aceita pelo ofendido.

Uma falta ou um erro pode ser compreendido sob dois pontos de vista distintos: o da religião, em que se chama "pecado", e o da ética, em que adquire o nome de "culpa". Interessante, então, será examinar, neste texto, o que isso tem a ver com o modo de encarar os conceitos que encabeçam o título de nosso artigo.

CONCEITO RELIGIOSO. Sob este ponto de vista, o que a Bíblia e os religiosos do Ocidente entendem como pecado já era conhecido dos hebreus, conforme consignado no Velho Testamento, tendo passado posteriormente ao Novo Testamento das religiões cristãs. Segundo a Bíblia, Adão nunca foi tratado como um “pecador”, mas sim como um “desobediente” às ordens de Deus. Essa desobediência é que se transformou em “pecado” com a instituição da Igreja Romana. 

O “pecado” brotou da mente fértil dos religiosos fundadores dessa instituição, representando tendência para o mal, imaginação doentia com o propósito de praticar o mal. Ora, como o homem é o único animal que pensa, conclui-se, então, que os animais não podem ser bons nem ruins; eles são simplesmente o que são e, por não pensarem e não terem a faculdade do livre-arbítrio, não podem distinguir o bem do mal. Os animais agem por agirem simplesmente por instinto, mesmo os mais selvagens quando caçam as suas “presas” e as matam para se alimentar não praticam o mal. É um processo de sobrevivência. 

A Grécia, que na antiguidade era politeísta, foi o portal de entrada para as religiões do Oriente. Naqueles tempos, a vontade de virem a se tornar deuses e deusas tornava os seres humanos desmedidamente orgulhosos, desencadeando o pecado do orgulho ou soberba. E os que já eram deuses os castigavam por esse pecado abominável. Assim, segundo o ponto de vista dos gregos, as faltas e os erros terminavam em culpabilidade, quer no sentido moral, quer no sentido ético, isto é, caíam nos erros ou faltas morais c nos erros de juízo ou conduta ética na convivência com terceiros em família ou na sociedade.

Eximiam-se os gregos das falhas e erros através da purificação, segundo o conceito pitagórico (cerca de 600 anos a. C.). E como se purificavam? Se os males eram do corpo, recorriam à medicina das ervas; se da alma, recorriam aos rituais religiosos, através das pitonisas (médiuns) dos oráculos, rituais esses que, na época de Sócrates e Platão (no século IV a.C.), já era conhecido com o nome de “catarse” (do grego, kataros, que significa puro, e do latim, purgatio, que significa purga, purgação). O termo catarse ainda é usado hoje em psicologia e psiquiatria. Purificavam-se, ainda, através da música e do teatro ao ar livre para o povo em geral, em que os atores representavam as tragédias do cotidiano como processo educativo e purificador das paixões da alma, levando os espectadores a se livrarem de seus erros e falhas, quase sempre ridicularizando a realidade vivencial. 

Só muito mais tarde, já no início da era cristã, as religiões instituíram a confissão como ritual para apagar os pecados de seus fieis. Palavras como “expiação” e “purificação” passaram a ser usadas com a ideia de purgar o espírito das suas afecções ou perturbações, da mesma forma que se limpava o corpo de seus humores pelo banho com água e sabão. Há três tipos de confissão: a auto-confissão, a confissão pública e a confissão auricular. 

Consta que a primeira confissão, ou seja, a auto-acusação dos pecados, foi adotada pelo bispo de Metz (França) em 763 de nossa era, em seu monastério. A confissão pública diante da congregação era feita pela Igreja primitiva, em praça pública ou perante congregações religiosas, mas causava grandes e escandalosos alvoroços. Somente a partir do quarto concílio de Latrão, em 1215, a confissão auricular tornou-se doutrina oficial da Igreja, renovada em 1547 pelo Concílio de Trento, em que o sacerdote passou a redimir os pecados dos seus fieis.

CONCEITO ESPIRITUALISTA. Curiosamente, certos teólogos de renome, como Tomás de Aquino (1225-1274), embora ensinassem a doutrina da predestinação, compreendiam muito bem o verdadeiro papel da vontade na “salvação” dos homens. Por isso mesmo, embora aceitando a contradição imposta pela Igreja, nunca deixaram de considerar o papel fundamental do livre-arbítrio na determinação da conduta humana. 

Usando, pois, o livre-arbítrio como faculdade fundamental do homem juntamente com os atributos do pensamento e do raciocínio, cabe aos homens assumir responsabilidades pelas faltas e erros que cometem. Isso equivale a dizer que o homem passou a assumir e direcionar os atos de sua vida através de condutas responsáveis. 

Dessa forma, cria o seu passado e o seu futuro nos seus atos do presente, no aqui e agora, de modo a minimizar o sofrimento e realçar a alegria em busca da felicidade relativa que este mundo pode nos proporcionar conforme a nossa maneira de pensar e agir. 

A compreensão espiritualista dessas verdades que estão inseridas no conjunto de princípios ensinados pelo Racionalismo Cristão nos leva a sermos responsáveis, isto é, sermos culpados pelas falhas e erros que cometemos ou causamos, repercutindo em nossa consciência de modo a nos submeter à lei de causa e efeito de forma irrecusável.

Se aprendermos a não causar sofrimento nem a nós próprios nem aos nossos semelhantes, estaremos caminhando para uma vida sem culpas e eliminando, assim, a necessidade de pedir desculpas. E se, involuntariamente, errarmos, um pedido de desculpa não humilha ninguém, desde que sinceramente reconhecido pelo ofensor e pelo ofendido.

(O autor é escritor e militante da Filial Butantã-SP)